13.10.08

VII – A “Voz” Narrativa em Lc 9, 1-6

VII – A “Voz” Narrativa em Lc 9, 1-6
1Tendo convocado os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem doenças. 2Depois, enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes, 3e disse-lhes: «Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas. 4Em qualquer casa em que entrardes, ficai lá até ao vosso regresso. 5Quanto aos que vos não receberem, saí dessa cidade e sacudi o pó dos vossos pés, para servir de testemunho contra eles.» 6Eles puseram-se a caminho e foram de aldeia em aldeia, anunciando a Boa-Nova e realizando curas por toda a parte.

O narrador aparece como a voz que conta a história. Ao contá-la, demonstra ser cúmplice de Jesus na medida em que é claro na maneira como descreve o poder que Jesus concede aos seus discípulos. O narrador acredita plenamente na autenticidade desse poder que é recebido pelos discípulos, tal como é peremptório na maneira de descrever a resposta dos discípulos. O narrador coloca-se ao serviço desta novidade de Jesus e dá o seu contributo no sentido de reiterar a verdade e a coerência daquilo que diz. Os seus valores são os valores de alguém que professa a fé em Jesus e que não tem dúvidas de que Ele tem poder para expulsar os demónios e curar os males. De igual forma, sabe que Jesus tem poder, e é para isso que vem, para dar uma nova vida a todo o homem, algo que se começa a exteriorizar neste episódio, por exemplo.
O narrador tem ainda conhecimento de que é necessário explicar no que consiste este poder com que Jesus cumula os discípulos, pois isso não vem expresso nas Suas palavras; por isso se serve da focalização externa, como forma de melhor explicar aquilo que se passa. Trata-se no fundo, de um comentário explícito do narrador que mais não é do que uma explicação que ajuda o leitor a perceber o contexto da cena. Ao dizer que Jesus envia os seus discípulos a anunciar o Reino de Deus, o leitor dá conta desta informação apenas pela voz do narrador e não pela voz do próprio Jesus que apenas diz o que eles não devem levar para o caminho. O narrador, percebendo que tal não bastaria, informa o leitor com a sua voz, dos pormenores que considera necessários para uma compreensão adequada da cena.
Um dos aspectos simultaneamente simbólico, mas por um lado também paradoxal, é o facto de Jesus lhes conceder uma grandeza em termos de poder e autoridade, para depois lhes “retirar” tudo quanto é material e faz parte da bagagem dum qualquer viajante. Joga-se aqui um tudo, contra um nada, numa lógica pouco humana, que resulta numa atitude de despojamento, que aliás será a atitude de Jesus na totalidade da Sua vida, que terá como grande consumação disso, a morte na cruz, que em Jesus é expressão autentica dum pleno despojar-se, não só dos seus haveres, mas da Sua vida e da Sua vontade, para se colocar nas mãos do Pai. Claro que isto surge como um aspecto camuflado e implícito, mas é um pormenor que vai ganhar um novo sentido à luz da totalidade do Evangelho. Não deixa de ser por isso, uma prolepse, que aponta para o futuro, para um acontecimento que iluminará o porquê desta atitude de Jesus, que embora os discípulos não pareçam estranhar, não o compreendem totalmente, pois não tinham tido pleno acesso ao “todo” da revelação de Jesus. Por outro lado, a ordem de Jesus face ao acolhimento ou rejeição dos habitantes de cada cidade traz acoplado a si, um gesto que vem já do tempo dos profetas, no Antigo Testamento: o de permanecer em casa dos que acolhem a Boa Nova e o de sacudir o pó das sandálias diante daqueles que rejeitam essa Novidade.
Finalmente, comparando o paralelo desta passagem com o que é dito em relação ao mesmo acontecimento no evangelho de Mateus, deparamos com uma cena mais demorada nesse outro relato evangélico, que é mais pormenorizada, nomeadamente no próprio discurso de Jesus. O narrador aproveita também aqui para enunciar o nome de cada um dos discípulos, que aliás, são posteriormente chamados apóstolos, a partir desta missão que lhes garante uma nova identidade. Em Marcos, também podemos contactar com este episódio, que por sinal, é ainda mais sumário do que o relato de Lucas e onde as próprias palavras de Jesus são mínimas. Lucas insiste na tónica do envio por parte de Jesus que isso se destina a encetar na terra, o Reino de Deus, expressão que lhe é peculiar.

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