16.10.08

Continuação do comentário do micro relato de Mc 5, 21-43

Continuação do comentário do micro relato de Mc 5, 21-43
Texto: Mc 5, 21 – 43
21. E passando Jesus outra vez num barco para o outro lado, juntou-se a Ele uma grande multidão; e Ele estava junto do mar.
22. E eis que chegou um dos principais da sinagoga, por nome Jairo, e, vendo-O, prostrou-se aos seus pés,
23. E rogava-lhe muito, dizendo: “Minha filha está moribunda; rogo-Te que venhas e Lhe imponhas as mãos, para que sare, e viva”.
24. E foi com Ele, e seguia-O uma grande multidão, que O apertava.
25. Ora certa mulher que, havia doze anos, tinha um fluxo de sangue,
26. E que havia padecido muito com muitos médicos, e despendido tudo quanto tinha, nada lhe aproveitando isso, antes indo a pior,
27. Ouvindo falar de Jesus, veio por detrás, entre a multidão, e tocou na sua veste.
28. Porque dizia: Se tão-somente tocar nas Suas vestes, sararei.
29. E logo se lhe secou a fonte do seu sangue; e sentiu no seu corpo estar já curada daquele mal.
30. E logo Jesus, conhecendo que a virtude de si mesmo saíra, voltou-se para a multidão, e disse: “Quem tocou nas minhas vestes?”
31. E disseram-Lhe os seus discípulos: “Vês que a multidão Te aperta, e dizes: Quem Me tocou?”
32. E Ele continuava a olhar em redor, para ver quem O tinha tocado.
33. Então a mulher, que sabia o que lhe tinha acontecido, temendo e tremendo, aproximou-se, e prostrou-se diante Dele, e disse-Lhe toda a verdade.
34. E Ele Lhe disse: “Filha, a tua fé te salvou; vai em paz, e sê curada deste teu mal”.
35. Ainda estava a falar quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: “A tua filha está morta; para que enfadas mais o Mestre?”
36. E Jesus, tendo ouvido estas palavras, disse ao principal da sinagoga: “Não temas, crê somente”.
37. E não permitiu que alguém O seguisse, a não ser Pedro, Tiago, e João, irmão de Tiago.
38. E, tendo chegado à casa do principal da sinagoga, viu o alvoroço, e os que choravam muito e pranteavam.
39. E, entrando, disse-lhes: “Por que vos alvoroçais e chorais? A menina não está morta, mas dorme”.
40. E riam-se Dele; porém Ele, tendo-os feito sair, tomou consigo o pai e a mãe da menina, e os que com Ele estavam, e entrou onde a menina estava deitada.
41. E, tomando a mão da menina, disse-lhe:” Talithá Kum”; que, traduzido, é: “Menina, Eu te mando, levanta-te”.
42. E logo a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos; e assombraram-se com grande espanto.
44. E mandou-lhes expressamente que ninguém soubesse da ocorrência; e disse que lhe dessem de comer.


1. Primeira aproximação: o relato está construído em sandwich – a motivação inicial é a cura da filha do chefe da sinagoga, mas no caminho para casa dele Jesus cura uma mulher hemorroíssa (Vers 25 a 34) que lhe toca nas vestes, ficando por isso curada. Esta técnica de Marcos reforça ainda mais o tipo de narrativa que adopta para esta perícope, que evolui num crescendo emotivo: o intercalar de uma história na outra funciona como um grande plano dentro de um plano geral – dá-nos de uma forma muito visual a forma como alguns na época queriam ver Jesus– um curandeiro, dando muito mais força à desmistificação que Marcos controi no resto do relato. Formalmente este micro relato de Marcos, analisado numa perspectiva semiótica e narrativa (Fowler), permite-nos tirar as seguintes conclusões:
a. Em termos de signos o texto dá-nos um Jesus “curandeiro”: (Vers. 30 – Ele sente que “a virtude saíra de Si mesmo”); uma multidão que o comprime (Vers. 31 “Vês que a multidão te comprime por todos os lados”) remetendo para a ânsia do povo/gentios que O procurava por causa dos milagres que fazia; No Vers. 40 “Mas faziam troça Dele” o texto reforça o lado de curandeiro, bem como o Vers. 42 “Todos ficaram estupefactos”; Dando-nos este lado “Mágico” de Jesus, Marcos usa o texto para cativar o leitor e garantir a sua adesão.
b. Em termos de narrativa, a forte emotividade que dela ressalta reforça a adesão do leitor: o relato vai num crescendo, começando por nos dar um Jesus disponível (Vers. 24”Jesus partiu com ele”), que evolui para um Jesus quase mágico (Vers. 30 “ Imediatamente Jesus conhecendo que a virtude saíra de Si mesmo, voltou-se para a multidão e perguntou:”Quem tocou nos Meus vestidos?””). No final temos um Jesus eficaz e com “autoridade” (Vers 39 a 42 “Entretanto disse-lhes:”Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A criança não morreu, está a dormir” Mas faziam troça Dele. Jesus pôs fora aquela gente, e levando consigo apenas o pai, a mãe da criança e os que vinham Consigo, entrou onde jazia a criança. Tomando-lhe a mão disse:”Talithá Kum” isto é, “menina eu te mando, levanta-te”. De repente a criança ergueu-se e começou a andar”) que nos deixa perplexos mas seguros. Neste relato Marcos capta o leitor em primeiro lugar porque espelha no texto as dúvidas e hesitações do leitor, levando-o a sentir-se compreendido. Mas depois de o “ter na mão”, conduz o leitor num percurso emotivo onde Jesus vai evoluindo do meio da multidão, encontrando o Seu espaço, e terminando por fazer um milagre que a todos deixa estupefactos (Vers. 42 “Todos ficaram estupefactos”).
c. O narrador é extradiegético, mas muito implicado na “missão” de transmitir ao leitor real, mas também ao leitor implícito, uma imagem de um Jesus muito humano mas com uma “autoridade” que “deixa todos estupefactos”.
2. Os limites do texto:
a. O relato tem início (tempo) depois da sequencia do homem possuído pelo demónio, quando Jesus atravessa para a outra margem do mar (espaço) seguido de uma imensa multidão, e termina com a cura da menina. Os personagens que intervêm, por ordem de entrada, são a multidão expectante; o chefe da sinagoga, Jairo; a mulher hemorroíssa; os que vinham da casa de Jairo; Pedro, Tiago e João; a multidão à porta da casa que fazia troça Dele; a mãe da criança; a criança.
b. Em termos de género literário, estamos perante uma construção sequencial, com um relato que integra, em forma de sandwich, dois micro-relatos (Vers 25 a 34), técnica característica de Marcos. A inserção da cura da mulher hemorroíssa tem como finalidade dar maior ênfase à cura da menina. “Marcos constrói a sequencia com a finalidade de contrastar atitudes” (D. Marguerat, Y. Bourkin, “Como leer los relatos bíblicos” Iniciación al análisis narrativo”). Neste caso trata-se da atitude de Jesus, que duma situação menos “credível” para a multidão, evolui para uma atitude demonstrativa do poder de que Deus O investira na terra (Vers. 39 a 42 “Entretanto disse-lhes:”Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A criança não morreu, está a dormir” Mas faziam troça Dele. Jesus pôs fora aquela gente, e levando consigo apenas o pai, a mãe da criança e os que vinham Consigo, entrou onde jazia a criança. Tomando-lhe a mão disse:”Talithá Kum” isto é, “menina eu te mando, levanta-te”. De repente a criança ergueu-se e começou a andar “.
3. Em termos de intriga ou trama, podemos dividir o texto da seguinte forma:
a. Estrutura quinária do micro relato da ressureição da filha de Jairo
i. Situação inicial ou exposição: Vers. 21 e 22 “Depois de Jesus ter atravessado na barca para a outyra margem, reuniu-se uma grande multidão junto d’Ele que continuava à beira mar. Chegou então um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, e, ao vê-Lo, prostrou-se a seus pés”
ii. Nó: Vers. 23 e 24-“ e suplicou-lhe instantemente: “a minha filha está a morrer; vem, impõe-lhe as mãos para que se salve e viva”. Jesus partiu com ele seguido por numerosa multidão que o apertava”.
iii. Acção transformadora: Vers 35 a 41- “Ainda estava a falar quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: “A tua filha está morta; para que enfadas mais o Mestre?”36. E Jesus, tendo ouvido estas palavras, disse ao principal da sinagoga: “Não temas, crê somente”.37. E não permitiu que alguém O seguisse, a não ser Pedro, Tiago, e João, irmão de Tiago. 38. E, tendo chegado à casa do principal da sinagoga, viu o alvoroço, e os que choravam muito e pranteavam.39. E, entrando, disse-lhes: “Por que vos alvoroçais e chorais? A menina não está morta, mas dorme”.40. E riam-se Dele; porém Ele, tendo-os feito sair, tomou consigo o pai e a mãe da menina, e os que com Ele estavam, e entrou onde a menina estava deitada”.41. E, tomando a mão da menina, disse-lhe:” Talithá Kum”; que, traduzido, é: “Menina, Eu te mando, levanta-te”.
iv. Desenlace ou resolução: Vers. 42 “ De repente a criança ergueu-se e começou a andar, pois tinha 12 anos”
v. Situação final: 42 e 43- “Todos ficaram estupefactos. Recomendou-lhes que ninguém soubesse da ocorrência e mandou dar de comer à menina”
b. Estrutura quinária do micro relato da cura da mulher
i. Situação inicial ou exposição: Vers 25 a e 26” Ora uma mulher vítima de um fluxo de sangue havia 12 anos, que tinha sofrido muito nas mãos de muitos médicos e que gastara todos os seus bens sem encontrar nenhum alivio, antes is cada vez pior”
ii. Nó: Vers. 27 e 28 – “tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a multidão e tocou-Lhe por detrás, na capa, pois dizia “Se ao menos tocar nas Suas vestes, ficarei curada”
iii. Acção transformadora: Vers. 29 a 32 -
iv. Desenlace: Vers. 33
v. Situação final: Vers. 34
c. É uma intriga de acção/resolução, mas há dois momentos, um em cada micro-relato, em que a intriga tem caractrísticas de revelação: Vers. 30 e 32; e Vers 42
4. Personagens: conto neste micro relato quatro personagens individuais (Jesus, Jairo, a mulher e a criança) e quatro colectivas (a multidão, os discípulos, Pedro/Tiago/João, e o pai+mãe da criança ). Os personagens principais são claramente Jesus, personagem redondo e empático, que é simultaneamente sujeito e emissário; e a mulher, personagem redondo também, simpático, mas destinatário e objecto secundário. Jairo é também secundário, plano e destinatário, como a criança. A multidão é um personagem, plano, um pouco antipático, secundário, que umas vezes é adjuvante e outras vezes oponente, como os discípulos. O grupo dos três apóstolos e do pai e da mãe da menina são planos, adjuvantes e objectos secundários.

Nenhum comentário: